Roupa dos Brancos Mortos - Têxtil dos países ricos é lixo em países africanos (Grande Reportagem)

2 years ago
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*************************A roupa dos brancos mortos**************

"A Grande Reportagem (emitido a 12-05-2022 na SIC) visitou o maior mercado africano de roupa em segunda mão e testemunhou os efeitos devastadores do consumo desenfreado da moda descartável.

Cerca de 70% da roupa que doamos para caridade e depositamos nos contentores acaba em África. O mercado de roupa em segunda mão é antigo e pode até ser visto como sustentável. Mas a falta de qualidade da chamada fast fashion e a quantidade de roupa que consumimos criou um gigantesco problema ambiental e social.

A Grande Reportagem visitou o maior mercado africano de roupa em segunda mão e testemunhou os efeitos devastadores do consumo desenfreado da moda descartável.

No mercado de Kantamanto, no centro da capital ganesa, cabem três praças do Terreiro do Paço, em Lisboa. É um mercado a perder de vista, com mais de três hectares. Há bancas de madeira tapadas com chapa cinzenta, bancas a descoberto e trouxas expostas no chão. Em todos os pontos de venda há produtos usados que ganham nova vida em Acra, a cidade à beira do Atlântico. Há vendedores de cintos, sapatos, sapatilhas e roupa, muita roupa de adulto e criança, roupa íntima para mulheres e homens.

Ao molho ou em manequins há “Obroni Wawu!”. A expressão em Akan, uma das línguas nativas, quer dizer “a roupa do homem branco morto”. É assim desde a independência, em 1957, quando o Gana começou a receber os bens em segunda mão do ocidente. Os ganeses acreditavam que só morrendo os homens se desfaziam do que tinham no armário.

O significado está desatualizado mas a expressão ficou, é a vida do mercado de Kantamanto e tem peso na economia do Gana. O país é o segundo maior importador mundial de roupa usada, suplantado apenas pelo Paquistão. Importou, em 2020, o equivalente a 160 milhões de euros em têxtil em segunda mão, segundo dados do Tony Blair Institute For Global Change.

Ao mercado de Kantamanto chegam por semana 15 milhões de peças de roupa usadas. São cálculos da The OR Foundation, uma organização não governamental instalada num estúdio do quarteirão do mercado, e que desde 2009 estuda o fenómeno da indústria do têxtil em segunda mão.

O Porto de Tema, a 20 quilómetros do mercado de Kantamanto, é a porta de entrada dos milhões de fardos de roupa. São exportados dos Estados Unidos da América, do Canadá, da China e da Europa, onde se destaca o Reino Unido. É a lista dos países que mais comercializam no Gana mas noutras capitais africanas a origem dos fardos é sobretudo europeia.

De visita a Vilaça, uma aldeia nos arrabaldes de Braga, a Grande Reportagem entrevistou um dos maiores exportadores de roupa em segunda mão em Portugal. Jan Karts, o holandês que com o pai fundou a Ultriplo, conta os 3 mil contentores de depósito de roupa espalhados por todos os distritos de Portugal e as 15 carrinhas que diariamente fazem a recolha do vestuário dado.

Não é segredo para ninguém que apenas uma parte da roupa doada é escolhida para agasalhar os pobres e despojados. A maioria é exportada, entrando assim na indústria mundial do mercado de roupa em segunda mão.

A Ultriplo processa diariamente 27 toneladas de roupa, três milhões de t-shirts por ano e tem na Gâmbia, o Senegal e Camarões os seus principais mercados de exportação. Nestes países, com uma marcada influência britânica, francófona e alemã, os importadores e retalhistas preferem o vestuário oriundo da Europa.

Os têxteis usados dos países mais ricos resultam de uma máquina de desperdício. As cadeias de fast fashion debitam coleções a um ritmo mensal ou mesmo semanal.

O vestuário é fabricado com materiais baratos, de má qualidade e é consumido por clientes que rapidamente descartam o velho pelo novo. A produção mundial de roupas duplicou em 15 anos; de 50 mil milhões de peças fabricadas por ano, em 2000, para 100 mil milhões de unidades em 2015, de acordo com o relatório “A New Textiles Economy”, da Ellen MaCarthur Foundation. O consumo acompanhou a oferta e o número de vezes que cada peça é reusada caiu 36%, ao longo dos mesmos 15 anos.

A roupa é embalada em fardos que pesam entre os 55 e os 200 quilos. Uns trazem apenas atoalhados e lençóis, outros são compostos somente por t-shirts ou calças. Liz Rickets e os outros elementos da The OR Foundation compraram um fardo de calças de ganga e chamaram-lhe Kevin. Pretendiam calcular os quilómetros percorridos pelos 103 pares de calças, com origem em 15 países, doados por consumidores norte-americanos, enviados para o Canadá para o processo de triagem e exportados para Acra. Concluíram que o conteúdo do fardo percorreu mais de dois milhões de quilómetros.

Um consumo de combustíveis fósseis que se torna um fardo para o planeta. Quem doa acredita que o seu desperdício é útil porque será usado pelos que mais precisam, um raciocínio que permite continuar a consumir sem peso na consciência. Bastaria, porém, conhecer as praias e as lixeiras de Acra para ver o efeito oposto desse consumo.

Old Fadama, no centro de Acra, tem o maior aterro de lixo eletrónico conhecido no mundo. O manto de barracas de madeira onde vivem 150 mil pessoas está dividido por zonas: a do lixo eletrónico e a dos resíduos indiferenciados. É nesta última pilha que se acumulam toneladas de roupa que todos os dias chegam do mercado de Kantamanto. Liz Rickets acredita, pelos estudos que faz no terreno desde 2009, que 60% do monte de lixo seja desperdício têxtil.

O jovem Idris Musa só cata peças de roupa na lixeira para se vestir. Os cedis (moeda ganesa) que ganha na apanha do cobre e plástico garantem-lhe a sobrevivência. No ano passado, os habitantes de Old Fadama pegaram fogo a uma parte lateral do monte de lixo acumulado, para evitar que caísse para o leito do rio Odaw. O perfil chamuscado do aterro mostra, como no perfil de um solo, as camadas de trapos negros vindos do rico ocidente sem qualquer uso no quintal do vizinho pobre.

O têxtil tem uma relação de complexa dependência com a água. O fabrico absorve anualmente 215 biliões de litros de água, segundo o relatório “A New Textiles Economy”, da Ellen Macarthur Foundation, de 2017. Diz o mesmo documento que a indústria têxtil é responsável por 9% dos microplásticos despejados anualmente nos oceanos.

Nas praias de Acra, o Atlântico devolve todos os dias para a beira mar o que lá chegou através dos esgotos a céu aberto. A Grande Reportagem esteve em Osu Beach e na praia do bairro Art Center, em fevereiro, mês seco no Gana. Há trapos por todo o lado na água e, na berma do mar, roupa embrulhada e esburacada, onde as etiquetas são mais resistentes, formam um polvo, cujos tentáculos atingem os três metros de profundidade na areia.

Nem puxando com toda a força do corpo é possível retirá-los. “É como se o mar estivesse a cuspi-las, cuspi-las, cuspi-las”, as roupas que chegam ao Atlântico através dos esgotos e das lixeiras ilegais. A metáfora de Liz Rickets ilustra bem o desastre ambiental que o consumo desperdício está a causar ao planeta.

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